Memórias primárias


Ana Maria. Ainda sinto o seu cheiro e oiço a sua voz. Já lá vão 35 anos e ainda trago na memória estas lembranças primárias. Tenho sempre a sensação que já passaram 50 e que o tempo passa a correr, mas afinal não é assim. O meu tempo não é como o tempo dos outros. Talvez seja por isso que aparento ter 20 em vez de 40 anos.
A minha primeira professora, foi como minha familiar sem ser efetivamente da família. Não era de sangue, era de coração. Tenho muitas saudades dela e nem sequer sei se ainda está viva. Pelo menos, na minha memória, está, e isso basta....
Estes meus compinchas de recreio e sala de aula, foram as minhas primeiras lições de amizade, partilha, compromisso, brincadeira, amor, patetices e muito mais...
Ainda tenho os seus nomes cá dentro, mas há um nome especial, não fosse ele uma pessoa especial. Este menino sentado ao pé da professora, tinha um problema no seu desenvolvimento cognitivo. Não sei ao certo qual era a sua condição. A professora nunca comentou nada connosco, talvez porque não o quisesse diferenciar dos outros. Apenas tratava-o com amor, carinho e atenção. Já vos contei que tive um Júlio na minha vida, o menino com trissomia 21, agora tinha o Paulinho, era assim que lhe chamava.
O Paulinho adorava ouvir música, passava o seu tempo a cantarolar e a fazer rap com as batidas que caracterizam este estilo musical. Já na minha adolescência, encontrei-o a passear na rua com uns auscultadores maiores que a sua cabeça, a fazer exatamente os mesmos sons com a boca ao sentir o ritmo da música. Aquele rapaz respirava felicidade! Já não posso dizer o mesmo de quem o observava, com um olhar reprovatório, como se fosse ali  um maluquinho.
Nesta turma, tinha amigos de todas as classes sociais, desde os mais pobres até aos mais "betinhos". Era natural, uma vez que estavamos perto de bairros sociais, "ilhas" e de moradias de gente importante das fábricas e indústrias portuenses existentes na época.
Tenho saudades das brincadeiras de recreio, da disciplina imposta pela professora, dos passeios que fazíamos, das patetices quando a professora se ausentava da sala, das danças que o Paulinho fazia em cima da carteira, do cheiro a fresco dos livros e do cheiro bom que se esgueirava da cantina. Não tenho saudades das reguadas, de ser chamada ao quadro e dos meninos mal comportados que nos roubavam o lanche. Naquela altura, o bullying já existia mas tinha outro nome menos pomposo, sem uso do estrangeirismo. Apesar das reguadas nos "acertarem o passo" e não gostarmos nada, hoje podemos dizer, seguramente, que eram um incentivo a fazermos melhor todos os dias. Aquilo que achamos ser um castigo, pode na realidade ser a nossa motivação para crescermos interiormente, dando espaço ao nosso auto-conhecimento e a estarmos mais atentos ao  mundo que nos rodeia.
Tive uma infância cheia de aprendizagens, porque o presente educativo que me deram em casa foi sempre à base do amor, tolerância, compreensão, humildade, gratidão, respeito, aceitação, liberdade e comunicação. Na escola, aprendi o hino, a escrever, a ler, a somar/dividir/multiplicar/subtrair, a tabuada e, uma coisa importante que toda a gente esquece, aprendi a Ser e a escalar montanhas. Tudo por culpa dos compinchas e da professora Ana Maria. Foi sempre a somar coisas boas e outras menos boas até aos dias de hoje. E ainda tenho mais 90% de RAM no meu cérebro, para usar e ocupar, com aquilo que ainda falta fazer pelos outros, pelos Júlios, pelos Paulinhos e essencialmente, por mim.
Sem recebermos algo dos outros, não conseguimos dar nada de nós, e vice-versa.

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