Abdicar de viver?

Um dia destes, liguei a TV e estava a dar o programa da Cristina. Tive a oportunidade de absorver parte da conversa que fazia com dois convidados. O tema foi sobre como é cuidar de um familiar com deficiência, e o que as leva a abdicar das suas vidas em prol desse familiar.A certa altura, a apresentadora pergunta ao jovem de 22 anos, porque razão toma conta do seu irmão com tanto amor e dedicação, abdicando assim dos seus sonhos e de fazer outras coisas normais como todos os outros jovens.
Até certo ponto, entendo esta curiosidade por parte da apresentadora, admitindo até, tratar-se de uma curiosidade que afeta grande parte da sociedade.
Afinal, o que se espera nos dias de hoje, de jovens mecanizados e supostamente insensíveis em questões de valores?
Sabem qual foi a resposta do rapaz à curiosidade da Cristina? A mais óbvia. Disse apenas que ama o irmão e que tinha de ajudar a mãe. Faz planos profissionais e pessoais, fazendo intenções de levar o irmão a morar consigo no futuro.
Quantas pessoas depositam deficientes num lar, renunciando os "problemas" que estes lhes trazem para viverem as suas vidinhas descansadas? São imensas. 

A grande lição que este jovem dá a muitos de nós, é que "abdicar da vida" significa compromisso, responsabilidade, e que não é egocêntrico. Que este amor pelo irmão, lhe dá muito mais do que dá a qualquer outro que julga ter uma vida perfeita. 
Portanto, não se trata de abdicar de viver a vida. Trata-se de valorizar ainda mais a vida, dar e receber Amor.

Nelson Mandela, partiu há muito, mas as suas palavras são imortais:

"Compromisso significa que ambas as partes envolvidas deviam abdicar de alguma coisa em favor da outra, significa ter capacidade para lidar com as exigências, os medos, da outra."

Quem não gosta de ter uma vida "normal", sem dificuldades, sem sofrimento, submersa em bens materiais, viver de aparências, usar máscaras, seguir os habituais padrões impostos pela sociedade, etc...?
Não sabem o que a vida vos reserva...

Atiro algumas perguntas para a atmosfera:.
- O que eras capaz de fazer por um familiar ou amigo com uma deficiência?
- Que sentido dás à tua vida? Saberás viver de verdade ou também abdicas das pequenas trivialidades que te colocam um sorriso no rosto?
- Sabes que se aprende mais, quando estamos rodeados de pessoas inspiradoras do que com a nulidade à nossa volta?
- Tens mesmo a noção, que não são os inadaptados a ter de se adaptar ao mundo, mas sim o contrário?

Continuei a pensar nesta frase "abdicar da vida". O que significa esta frase para mim?
Para mim, abdicar da vida significa morrer, renunciar a algo e ignorar o que me rodeia.
Abdicar da nossa vida quando decidimos cuidar de alguém, quer dizer que deixamos de levar uma vida miserável para ser ainda mais miserável?
Ou será, que deixamos de ser úteis a nós mesmos para nos tornarmos verdadeiramente imprescindíveis no todo?
Eu sei que muitos olham para o meu caso como "aquela rapariga que abdicou da vida para viver com um homem cheio de problemas de saúde. O que vai ser daquela miúda! Que Deus a ajude". E não é que Ele ajudou mesmo? Entregou a Sua paixão nas minhas mãos e mostrou-me que a vida não é um mar de rosas, nem amor numa cabana, é tudo junto. Porque a vida só faz sentido se vier com tudo incluído. Esqueçam a meia-pensão...😂

Vivi com um homem aparentemente saudável, a nível físico e mental, mas não tinha sonhos nem objetivos, e com isso achava que me podia levar com ele para um buraco onde nem o SIRESP nos encontrava. Não tive alternativa senão dar-lhe um pontapé no ego e na vaidade, porque pensava que podia tudo sobre uma mulher, e na verdade, em nada evoluía ao lado de uma pessoa desta espécie. Quilhou-se! (em bom termo tripeiro).
Entretanto, conheço um homem com diversidade funcional e descubro uma coisa incrível: a cadeira de rodas é apenas um acessório, um adereço.
Enquanto um era livre, vivia preso na sua mediocridade. O outro, vive preso numa cadeira de rodas, no entanto tem asas, sonhos e faz acontecer todos os dias.
A vida é matreira, não é?
Não era necessário descrever que é um homem fantástico, inteligente, que sabe respeitar as mulheres, é divertido, apaixonado pela vida, gosta de viajar, de comprar lingerie para a mulher (era escusado revelar, mas é só para verem a sua perspicácia, audácia e cativação), gosta de escrever, ir ao cinema, ouvir música, de fazer coisas absurdas (no bom sentido) com os pés, etc etc...
Depois de lerem isto, têm a coragem de pensar que eu abdiquei de viver, ou que este jovem também abdica de ver o irmão sorrir? 

Só para rematar pra golo, e concluir tal e qual como comecei este texto, pelo que tenho conseguido acompanhar do programa da Cristina, para já, é a única "saloia" da televisão portuguesa que mais tem sensibilizado a opinião pública para as questões da deficiência. Não usa estes exemplos por sensacionalismo ou aproveitamento para aumentar as audiências. Servem para mostrar que existe alguma humanidade e amor no meio disto tudo. Por isso, não tenham vergonha de serem um pouco saloios como eu ou como a Cristina.
Não sejam umbiguistas, e tenham a coragem de olhar nos olhos dos vossos pais velhinhos e dizer: "Nunca abdicarei da árvore da vida que plantaram, alimentaram e viram amadurecer."
As pessoas não são descartáveis, nem se separam nos contentores amarelos, azuis e verdes, só porque vocês querem andar num Tesla.












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