Uma miúda peculiar


Quando nasceu, teve o infortúnio de não conhecer o seu avô paterno. Ele bem que esperou por ela, mas cometeu o erro de escolher nascer 11 dias depois dele partir.
Não sei porque motivo escolheu o dia 30 de dezembro para o fazer, mas sei que detesta esse dia desde sempre.
Tem consciência de que nesse dia, o seu nascimento provocou dois sentimentos: alegria por ter nascido com saúde, e tristeza por faltar alguém importante na sua vida.
Ela podia ter nascido com paralisia cerebral ou não nascer de todo. A sua mãe entrou em trabalho de parto, mas quem a atendeu na maternidade, preferiu continuar a ver a novela Gabriela, Cravo e Canela. Foi para casa com um possível nado morto na barriga.
Mas...valeu-lhes um anjo. Como sempre.
Não sei se o seu avô teve alguma coisa a ver com isso, mas um milagre aconteceu.
Era suposto nascer na maternidade Júlio Dinis, conforme estava preparado, mas foi nascer no vizinho do lado chamado de Santo António. Afinal, os escritores não fazem milagres mas os santos sim.

Depois deste nascimento um pouco atribulado, era a bonequinha que passava de colo em colo. Foi a mascote na primária, e confessa que sempre continuou a sê-lo até ao 12°ano.
Era franzina, tímida, introvertida e pequenina. Um chamariz de bullying ambulante.

Nunca foi pessoa de coleccionar amigos. Nunca os escolheu. Eles vinham e iam aleatoriamente mas com um propósito. Mais tarde percebeu isso.
Sempre gostou de se relacionar com gente mais experiente, nomeadamente, os idosos. E com crianças peculiares. Não gosta de lhes chamar especiais, porque especiais somos todos, ou quase todos.
Acredita que são estas pessoas que nos acrescentam valor, que nos fazem crescer por dentro e por fora, tal e qual como fermento no uso culinário.

Esteve sempre rodeada pela diversidade funcional, aliás, como qualquer outra pessoa, mas tinha um "problema" que outros provavelmente não tinham.
Ela Importava-se.
Não era Indiferente.
Era Curiosa.
Por fim...era Peculiar. E ainda é.

Sem se aperceber, na primária tinha um amigo autista. O melhor de todos.
Fora da escola e nas idas ao café, tinha o amigo Júlio com trissomia 21. A sua avó dizia que era o seu namorado Júlio, porque não arredada pé sem lhe dar um beijo.
No 5° e 6° anos, preferia estar com os meninos apelidados de "atrasados mentais" da APPC que ficavam na sua sala, do que ir para o recreio saltar ao elástico.
Mudou de escola, deixou de viver a deficiência de perto. Perdeu contactos, mudou de rumo.

A deficiência para ela tinha deixado de ser o foco. Passou a esquecer o óbvio, as dificuldades e falta de oportunidades que a diversidade enfrenta todos os dias.
Perdeu-se no tempo e nas suas origens.
Estaria ela destinada a regressar à sua infância?
Ela hoje pode afirmar que É o que Era antes. Tudo o que semeou na infância, colheu na sua vida adulta.
Tinha de ser assim.
Se não o fosse, porque teríamos de nascer crianças e não adultos?
A sua maturidade desde cedo se afirmou por causa da infância rica que teve. Mas faltava algo. Olhar nos olhos do seu avô que não conheceu.
Por essa razão, talvez por força do destino, foi trabalhar para um lar durante um ano como ajudante-familiar. Não sei se ela fez o seu trabalho bem, mas tem a certeza de quem Não o Fez. Aprendeu muito enquanto lá esteve e também viu o que não queria. Infelizmente, não somos todos feitos do mesmo fermento e cada vez há mais bolos estragados na sociedade.
Tanto na educação como no trabalho social, há uma desumanização crescente das competências profissionais. Não se treinam seres humanos nas escolas e nas faculdades. Treinamos máquinas registadoras.

Precisamos de mais pessoas peculiares e "estranhas" ao serviço.
E uma vez que ela é estranha, vou pedir à senhora Peregrine, para que a deixe viver na sua casa.





Comentários

  1. Precisamos de um sistema educativo que premeie a singularidade e não a imitação... são as especificidades de cada um que abrilhantam o nosso dia-a-dia.

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