Acessibilidades: o que é isso?



Vivo em Amarante desde 2016 e, pela primeira vez, conheço uma cidade na sua plenitude, não apenas pelos seus factos históricos que a contemplam, mas pelo seu lado negro e obscuro sobre a falta de acessibilidades. Canto por canto. Esquina com esquina.
A minha cidade, como tantas outras por aí, não é acessível a pessoas com mobilidade condicionada. É antiga e o património tem de ser preservado. Na lei, que define o regime das acessibilidades, existem exceções à regra porque sim, porque tem de ser, porque assim é definido pela cabeça de um especialista na coisa.
Por isso, importa dizer, que esta cidade como tantas outras, não vive para Todos os seus habitantes.

Durante dois dias, tirei a prova dos nove passeando pela cidade, numa cadeira de rodas eléctrica. Vi o que muitos não conseguem decifrar porque não estão focados no problema.
Porquê escolher uma cadeira eléctrica em vez de uma manual?
Porque é ela que me dará respostas completas a tantas questões. É ela que vai complicar a vida a quem tem a faca e o queijo na mão, e nada faz.
Olhamos para uma cadeira de rodas eléctrica e pensamos ter toda a autonomia, porque nos liberta da ajuda de outra pessoa. Engano. Quando quiseres subir um simples passeio sem rampa, não consegues porque é alto, e perceberes que vais ter de andar pelo meio da rua, vais desejar estar sentado numa cadeira manual e ser ajudado por terceiros.
Uma cadeira de rodas eléctrica é boa para locais adaptados a ela, e não o contrário.
Investir num carro adaptado para levar a tua cadeira, sem a cidade ter as devidas acessibilidades, é dinheiro deitado fora.
O preço de uma cadeira eléctrica é uma autêntica exploração sem nexo, e será a seu tempo obsoleta por força das circunstâncias - pela Cidade onde vives.
Depois, aqui, também não existem transportes públicos adaptados. É outra lacuna insensível.

Durante esta aventura, tirei muitos apontamentos, corei e senti-me envergonhada.
Fotografei horrores, pesadelos, corei e senti-me envergonhada de novo.

Vi um completo desrespeito para com os outros.
Vi a ignorância dos olhares e arrogância bem de perto.
Vi o egocentrismo em acção.
Vi inúmeras inutilidades materiais e imateriais.
Vi onde o dinheiro é mal gasto e onde deveria ser empregue e não é.
Vi o que falta e o que está a mais.
Vi associações, instituições ou entidades que representam muito mal o que defendem.
Vi o mundo através de uma simples cadeira de rodas eléctrica.
Alguém aí com coragem para fazer o mesmo?

Vamos ao que interessa.
Este texto, não é, nem pretende ser um texto político ou jurídico. Deixo essa matéria para quem dela entende ou pensa entender. Serve para sensibilizar a quem nunca pensou muito sobre isto.
Falemos de Barreiras Arquitectónicas.

Podem as barreiras arquitectónicas causar sofrimento, ou até mal-estar, para quem depende de uma cadeira de rodas para se deslocar?
Acho que não é necessário ser um guru para adivinhar a resposta.
Podem e causam mesmo. Nas pessoas com deficiência e nos que cuidam delas.
Depressões, frustrações, sentimentos de ódio e revolta, estados de constante negação de si próprio, mazelas físicas e muito mais.

Todos já ouviram falar do decreto-lei imposto pela UE, para que os Estados adaptassem os seus edifícios e estabelecimentos, em que, passo a citar "A promoção da acessibilidade constitui um elemento fundamental na qualidade de vida das pessoas, sendo um meio imprescindível para o exercício dos direitos que são conferidos a qualquer membro de uma sociedade democrática, contribuindo decisivamente para um maior reforço dos laços sociais, para uma maior participação cívica de todos aqueles que a integram e, consequentemente, para um crescente aprofundamento da solidariedade no Estado social de direito.", blá blá blá pardais ao ninho.

Nunca é demais perguntar, onde está o Estado social de direito? O que anda a fazer o INR? Ao contrário do que possam estar a pensar, o INR tem feito muito (pouco), isto é, a sua missão corresponde a 5 verbos apenas: promover, fiscalizar, instruir, emitir pareceres e apoiar. Acrescentaria outro verbo: ENGANAR.

Andam a enganar Todos.
Desde os assessores e adjuntos dos membros do governo até ao Presidente da República, na lista das precedências do protocolo do Estado Português, ninguém quer saber das dificuldades na vida de um deficiente, com exceção de um deputado que, ironicamente, também usa uma cadeira de rodas para se deslocar e defende muito bem os nossos direitos. Foi preciso ir um "rodinhas" trabalhar para a AR, para se fazerem as alterações necessárias na questão das acessibilidades dentro da AR.
Tivemos 10 anos para adaptar Portugal ao regime das acessibilidades. Pouco ou nada se fez.
Durante 10 anos, crianças em tratamento de patologias oncológicas, foram depositadas em contentores num dos hospitais de referência do norte, e seria uma situação provisória. 10 anos!
Gastamos milhões de euros para construir 10 estádios em tempo recorde, mas não fomos capazes de cumprir uma directriz europeia relativamente às acessibilidades, na defesa dos direitos de pessoas com deficiência.
Estão à espera do quê?!!

Alguns cidadãos atentos, vão alertando para estas questões, em especial, aqueles que vivem o problema.
Foi preciso um Eduardo Jorge dormir à porta da AR para se despertar na questão da vida independente. Foi necessário a associação Salvador desafiar o primeiro-ministro e os deputados para um treino de "crossability", naquele que seria o desafio mais duro das suas vidas. Isto parece um circo de aberrações e marionetas, não parece?
Chego à triste conclusão de que para se fazer alguma coisa pela deficiência, é preciso viveres a deficiência. Se fores um tipo " normal" nem te lembras que ela existe. É por esta razão, que o estado das coisas não avança e vai-se fazendo, aos poucos.

No tempo em que o património arquitectónico vale mais do que o bem-estar do ser humano, ou uma catedral move milhões de euros para a sua reconstrução sem que passe primeiro a ser alimento no prato de uma criança faminta, por tudo isto não podemos esperar muito do Homem nem de um decreto. Partem os homens, ficam os calhaus.

Tenham também a coragem de conhecer a fundo a cidade onde vivem. Façam registos de todas as situações anómalas encontradas na via pública, edifícios e estabelecimentos públicos e privados. Procurem por elevadores inúteis onde não cabe uma cadeira de rodas; passeios sem rampas de acesso para descer ou subir; postes no meio dos passeios; a falta de wc's públicos; estabelecimentos comerciais com dístico de atendimento prioritário mas sem acesso ao interior, por não ter rampa ou porque a porta é demasiado pequena; reparem na altura das caixas multibanco; verifiquem a quantidade de escadas que embelezam os edifícios sem haver outro tipo de acesso; vejam também quantas clínicas, centros de saúde e outros locais de serviços públicos, que não têm um único lugar de estacionamento reservado a pessoas com mobilidade condicionada; etc etc.
Tornem estes relatórios públicos, enviem a mesma informação às entidades (in)competentes para sentirem na pele a mesma vergonha. Mas não basta! O tribunal europeu terá de sancionar esta irresponsabilidade.
Sejamos proativos. Dá trabalho, mas absorvem-se novas aprendizagens.
As redes sociais são um bom instrumento de denúncia, mas só servem para ficarmos carecas de tanto stress.
Um dia podem cair numa cadeira de rodas, e vão lembrar que alguém andou a "trabalhar" para vocês, enquanto viviam as vossas vidinhas na indiferença.

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